terça-feira, 2 de dezembro de 2008

SONHO REGRESSIVO

Por Xico Graziano

SONHO REGRESSIVO

Era 30 de novembro de 1964. O General Castelo Branco, primeiro presidente militar do país, promulgava o Estatuto da Terra, defendendo a reforma agrária. Até hoje permanece a dúvida: por que o regime autoritário adotou a proposta que mais combatia?
A análise histórica predominante argumenta que os militares roubaram a principal bandeira da esquerda brasileira visando iludir e desmobilizar os movimentos sociais da época. Assim, o Estatuto da Terra representa, na verdade, um subterfúgio político. Uma esperta enganação.
Dezenas de estudos, teses acadêmicas e livros acabaram publicados referendando tal idéia. Os mais conceituados intelectuais a ela aderiram. Todos acreditando que a lei da reforma agrária, vinda dos militares, só poderia ser um embuste. Virou um paradigma.
Não fazia lógica pensar ao contrário. Desde Francisco Julião e suas ligas camponesas, famosas no Nordeste entre as décadas de 1950 e 60, a reforma agrária ecoava ruidoso brado contra o poder oligárquico. Com a assunção de João Goulart à Presidência da República, em setembro de 1961, os comunistas, que lideravam as demais organizações de esquerda, avançaram. A ordem era tomar os latifúndios e distribuí-los aos trabalhadores rurais. Tempos ruidosos.
O diagnóstico soava comum na América Latina. As desigualdades da estrutura agrária causavam a baixa produtividade agrícola e levavam à pobreza do homem do campo. Um entrave ao desenvolvimento. A teoria econômica se junta com a política e, no calor dos acontecimentos, em março de 1963, Jango encaminha ao Congresso Nacional o projeto governamental de reforma agrária. O assunto esquentou.
As desapropriações de terras, segundo o plano oficial, seriam permitidas obedecendo à nove condições. A reforma atingia de tudo. Incluía as fazendas improdutivas, as exploradas em arrendamento ou parceria e, inclusive, àquelas que “... embora utilizadas, sejam indispensáveis ao abastecimento dos centros de consumo”. Haja ousadia.
A reação dos conservadores, apavorados com a perspectiva de verem expropriadas suas posses, chegou forte. Em 7 de outubro de 1963, o projeto esquerdista de Jango foi derrotado no plenário da Câmara dos Deputados. Mas nem o Presidente, nem os agraristas se conformaram. E decidiram partir para o revide, nas ruas. Grandes comícios se organizaram, discursos acalorados pregavam as reformas de base, a começar da reforma agrária. Na lei ou na marra.
Deu no que deu. Recuperar esse clima político é importante para entender a perplexidade daqueles que, engajados na luta da reforma agrária, viram, meses após o golpe, Castelo Branco assinar a lei fundiária. Sentiram-se como alguém ardilosamente surrupiado de seu enredo. Qual era, afinal, o intuito do regime militar?
Carmem de Salis, jovem e atrevida historiadora, lança agora novas luzes sobre essa intrigante questão. Sua excelente tese de doutoramento, apresentada recentemente à UNESP/Assis, rompe com a teoria dominante na esquerda, comprovando, com sólida análise, que o governo militar não jogava para a torcida. Os formuladores do Estatuto da Terra defendiam a reforma agrária com convicção.
A diferença entre a proposta de João Goulart e a de Castelo Branco residia, fundamentalmente, na ideologia. Ambos visavam a desapropriação dos latifúndios. Mas, na perspectiva da esquerda, a reforma agrária deveria desaguar no socialismo. Para os castelistas, ao contrário, o objetivo era encorajar o capitalismo. Como?
Fortalecendo a propriedade privada da terra. Acabar com os “parasitas” da estrutura fundiária, os velhos coronéis, permitiria criar uma progressista “classe média” no campo, com óbvia tendência conservadora. Nada melhor para evitar o perigo comunista de então.
Os acontecimentos posteriores impediram que o reformismo liderado por Castelo Branco prevalecesse. Seu falecimento, em julho de 1967, abriu as portas para a “linha dura’ do regime militar. Primeiro, assumiu Costa e Silva, Ministro da Guerra; depois, em 1969, chegou Médici. Época dos brucutus torturadores. Com eles, a política fundiária muda completamente, priorizando-se a colonização das terras devolutas na Amazônia.
A ousadia da pesquisadora da UNESP abre brecha para uma reflexão. Fazer reforma agrária não significa, automaticamente, mudar o sistema econômico. Nem, tampouco, distribuição de terras se confunde com socialismo. Basta analisar a história.
O capitalismo europeu somente vingou quando, na Revolução Francesa, os camponeses tomaram as terras dos nobres. Quem ganhou foi a nascente burguesia urbana. No Japão, após a Segunda Guerra, a reforma agrária promovida pelos EUA criou as bases de formidável economia. Propriedade privada.
Na Rússia, verifica-se diferente rumo. A política revolucionária, executada na ponta da baioneta pelos comandados de Lênin, depois Stalin, levou à forçada coletivização da agricultura. Em Cuba, igualmente, a terra acabou nacionalizada por Fidel Castro. Propriedade coletiva.
Inexiste conclusão fácil nessa matéria. Tudo indica, porém, que a evolução da história superou o drama agrário, trazendo novos dilemas ao campo, como a problema ecológico. Há, decerto, os que ainda tentam fazer revolução no campo. Mas estes se assemelham a um perverso dom Quixote: criam uma fantasia, manipulam a pobreza e inventam moinhos de vento.
Com o fim do socialismo, a luta pela igualdade social tem transformado a reforma agrária numa espécie de sonho regressivo. A sociedade global, consumista, competitiva, parece exigir, no íntimo das pessoas, aquela busca de quietude que apenas se encontra no campo, a busca da paz que brota da terra. Uma utopia.

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